sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Episiotomia NÃO! ou "É só um cortezinho?"



Estive presente na tarde de ontem (23/10/2014), como ouvinte e ativista, de audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal sobre "Episiotomia e Humanização do Nascimento".
Ativistas, mães, estudantes, médicos, gestores - todos ouviram o coro: "Episiotomia NÃO!"
Foto de Sarah Bryce

Foi, na verdade, uma grande aula de diversos mestres: mulheres que sofreram violência obstétrica, ativistas, cientistas, pesquisadores, estudantes, gestores de hospitais, médicos, enfermeiros obstetras e obstetrizes.


Símbolo do períneo íntegro!
A já conhecida e muito citada obstetra dra. Melania Amorim iniciou o encontro com um emocionante compilação do que eu gostaria de chamar de "evidências das evidências". De toda a sua aula, o que bateu forte em mim foi a crítica feita à necessidade um tanto - ou completamente - equivocada de se produzir evidências científicas para provar que certos procedimentos são obsoletos, procedimentos esses que começaram a ser praticados sem estudo científico qualquer que provasse sua necessidade. 

É o requinte da soberba humana, necessitar de evidências científicas para provar que um evento fisiológico não oferece riscos à integridade física das mulheres e seus bebês.



Senhoras e senhores, lhes apresento o clítoris!

Pois é... essa nossa vida hierarquizada, de transferência de poder para as mãos institucionais do professor (escola), da polícia, do médico (hospital), do Estado, nos cega para o fato de que a medicina não é dona da verdade e que muitas de suas práticas são baseadas em estudos do século XIX ou anteriores , feitos por médicos convictos de certas crenças - veja bem, crenças e não evidências: o corpo da mulher é defeituoso, o parto é um castigo, o homem (o macho da espécie) pode consertar tudo isso.

A fala da Dra. Simone Diniz corroborou essa questão por apresentar o viés machista e misógino da cultura da intervenção obstétrica: a crença de que o corpo feminino é defectivo, de que a vagina é um órgão frágil feito para receber um falo (seja ele um pênis, uma tesoura ou um fórceps) e não um órgão composto por fibras musculares, terminações nervosas e tecido erétil.

 "É só um cortezinho"(?) - ato cirúrgico que corta diversas camadas de músculos e tecidos para impedir que a mulher sofra alguma laceração do períneo (??? O.o !!! )


É impossível não lembrar da caça às bruxas na Idade Média, ao se dar conta que uma episiotomia rasga tecidos de um órgão exclusivamente feminino - o clítoris - cuja única função é proporcionar prazer à mulher.

Os relatos de mulheres que sofreram episiotomia foram, no mínimo, chocantes. Os procedimentos realizados de forma tão fria, mecanizada, sem a dignidade de ao menos saber o que estava sendo feito, sem o consentimento e muitas vezes sob pedidos que não fossem feitas... 

Laura Alonso, mãe da Mari, doula e uma das idealizadora do Espaço ComVida. Que sua história não tenha se passado em vão! Aos que precisam ouvir, que ouçam!
Foto de Sarah Bryce


É de uma crueldade digna de filme de terror que, infelizmente, é reprisado dioturnamente no país, vide as taxas apresentadas pelo Ministério Público (algumas maternidades apresentam 90% de partos vaginais cirúrgicos). Chorei em todos os relatos, me coloquei no lugar dessas mulheres e as aplaudi pela coragem de expor algo tão íntimo e avassalador. O meu carinho a todas elas e a todas as que não estiveram por lá, mas sofreram também com violência obstétrica! Como a promotora Ana Carolina Previtalli bem colocou, que o esforço de vocês não seja em vão, que contribua para que os responsáveis repensem suas práticas, para que mais flores desabrochem nesse caminho tão tortuoso.

A cicatriz de uma episiotomia pelo delicado olhar de Carla Raiter no projeto
 "1:4 - Retratos da Violência Obstétrica"


A atmosfera era de indignação, podia se ouvir os pensamentos em coro: "O corpo é nosso! Queremos mudanças! Episiotomia NÃO!"

Quem por lá esteve, foi brindado com relatos de experiências bem sucedidas, como as do Hospital Sofia Feldman em Belo Horizonte (MG), da Casa Ângela, na Zona Sul de São Paulo - única instituição com 0% (isso mesmo, ZERO) de episiotomias, além do projeto "Parto Seguro à Mãe Paulistana". Tais experiências serviram para mostrar que é possível a mudança se o parto for encarado como um evento fisiológico, cultural e social... e não médico! 

O que ficou claro é que episiotomias de rotina são inadmissíveis. Não há evidências científicas que provem a necessidade de fazê-las. Há que se repensar o modelo de saúde nacional, voltado para atender a doença e não para promover saúde. Isso somente se dará com um diálogo aberto entre gestores públicos e privados, médicos, obstetrizes, enfermeiros e, principalmente, AS MULHERES!! 

O que reverbera em mim até agora é a colocação de uma aluna do curso de obstetrícia da USP, de que estamos enfrentando um paradoxo: a necessidade de humanizar o nascimento humano. Parafraseando a promotora Ana Carolina Previtalli, a que ponto chegamos, afinal, ao dizer que um médico ou uma instituição é humanizada? Todos os outros são o que então? Desumanos?

Não há curso de reciclagem, protocolo de atendimento readequado, mulher empoderada que chegue a falta de sensibilidade do profissional que se recusa a ver que EPISIOTOMIA É VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA! Por amor, parem de chamar de "cortezinho", "piquesinho"... parem de diminuir um PROCEDIMENTO CIRÚRGICO e de tratar a mulher como um ser inferior, que entende só o que lhes é falado no diminutivo).

Enfim, evidência científica nenhuma no mundo será suficiente se os profissionais que lidam com o nascimento continuarem a não enxergar, ouvir, sentir, acolher e compartilhar a dor das mulheres que saem das maternidades multiladas, destroçadas e marcadas física, sexual e psicologicamente para o resto de suas vidas!

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Oração

Mais um parto - o da jovem C. Mais uma nascimento  - do lindo D. Mais uma situação de violência obstétrica. 

A energia que me trouxe até aqui e me arrebatou para a causa da humanização do parto impede que meus olhos se acostumem com esse tipo de situação. A indignação permanece em mim e se transforma em força para buscar outros caminhos, outros olhares.

A minha presença nos partos que acompanho reverbera nos profissionais que estão comigo uma energia de respeito, admiração, carinho e amor por essa mulheres que escolheram - ou não - gerar novas vidas.

As mulheres sabem parir. Os bebês sabem nascer. Os que nascem respeitados, respeitam. Os que nascem em paz, semeiam a paz. Os que são amados, amam -  a si e ao próximo. Os profissionais da obstetrícia têm plena consciência disso e respeitam o momento sagrado do nascimento, o direito da mulher de parir e o direito do bebê de ser parido, em paz.

Cada novo ser humano que vê a luz pela primeira vez e dá o seu primeiro suspiro de vida o faz no colo de sua mãe, aquecido por sua pele, respeitado no mais primordial dos direitos: o de ter uma experiência de parto positiva, que representa uma transição tranquila, amorosa, respeitosa - e tudo isso é reflexo de uma sociedade também amorosa e respeitosa com todos os seres humanos, incondicionalmente. 

E eu estou viva para presenciar esse glorioso momento da humanidade.

Axé
Amém
Que assim seja